quarta-feira, 18 de abril de 2018

[ anti-racismo ]

De cada vez que dizemos «eles», segregamos. 

De cada vez que nos referimos aos outros como parte de outro grupo, dividimos.

De cada vez que nos distanciamos deles, damos lugar à separação.

Por duas vezes tão distintas, fizeram-no ao pé de mim. «Eles», os pretos. «Eles», os muçulmanos.
Como se «eles» não fossem parte da população mundial que também «nós» integramos.

Ao tornar um determinado grupo num grupo, excluímos - os que supostamente fazem parte dele e também quem fica de fora. Se apontar como diferente e categorizar humanos, dou espaço a que qualquer tipo de segregação seja legítima. Tu vais para um lado porque és isto, tu fazes aquilo porque és aqueloutro.
Como se não fôssemos todos parte deste estranho lugar que habitamos. Como se houvesse raças de humanos além da raça humana, a única cuja existência efectivamente reconheço.

Li há dias que numa sociedade racista, não basta não ser racista; é preciso ser anti-racista.

Nasci anti-racista.

Não sei como fazer para reverter preconceito, seria preciso reverter ignorância, acrescentar inteligência, inserir princípios que deveriam ter sido incutidos e encaixados por memória genética.

Há algum tempo, na minha mesa de café, alguém defendia que Portugal não era um país racista. A pessoa em questão tinha particularidades e um contexto que não fundamentavam uma opinião credível: a tez pálida, os olhos claros e o tom alourado do cabelo não permitiriam que soubesse do que falava, já que sempre viveu num país europeu em que o preto é descrito como preto. Não ser racista não implica que a sociedade que nos rodeia não o seja.

Dizia ela que não existia racismo em Portugal, que na sua família sempre tinha sido comum o convívio com quem não era branco, que já não havia qualquer tipo de diferença no comportamento perante quem apresenta características físicas que não se coadunassem com as suas.
Que engano bom. Quem dera que assim fosse. Só mesmo quem não tem noção da realidade pode afirmar algo tão longe de ser verdade com tamanha convicção.

Nascida e criada numa família tão cosmopolita como caracterizada pela mistura de carga de melanina, só descobri o racismo quando outros meninos me apontaram o dedo por ser filha de uma preta. Não percebi, como hoje não o percebo, mas reagi como um ser sensível e cheio de luz: «mãe, quero ser como tu», chorava.

Os meus pais contornaram a situação alegando a riqueza que é ser mestiça: «meu amor, tu não és só leite, não és só chocolate, és ainda melhor - leite com chocolate!».
Infelizmente, isso não chega para começar a usar saias sem vergonha a partir de Abril. A minha cor de lula nunca foi razão para que me orgulhasse. Orgulho, sinto de mim, por me ter surpreendido quando uma tia sublinhou o facto de o Lenny Kravitz ser mulato. Nunca tinha olhado para ele assim. Achava-o fenomenal, simplesmente. Bonito. Não pensei nele como um ser com maior quantidade de melanina que outros.
Não penso assim. Não vejo assim.

E dói-me quando alguém olha com espanto e interrogação para aquele casal que tenho como parte do meu círculo de amigos como a preta que namora com o branco. Ou quando alguém da família dela lhe diz que devia encontrar um marido escuro como ela.
É tão absurdo como não gostar de alguém por só ter um rim - é uma diferença semelhante. Ou por ter nascido com cabelo liso. Ou por ter nascido com dois dedos do pé colados.

É invólucro.

Hoje sei que ter vindo ao planeta nesta mistura de fado e semba faz de mim um ser humano híbrido, na verdade. Pleno. Demasiado escura para a Europa, demasiado branca para África. Do mundo inteiro, afinal.
Não tenho carapinha, mas tenho um rabo grande, um nariz com ponta redonda e os lábios carnudos. Sou feita de fragmentos de dois pólos maravilhosos.

Pouco depois de nascer, a minha mãe foi abordada na rua, numa terra pequena onde o meu pai dava os primeiros passos na sua carreira. Uma velhinha queria ver a menina, a filha do veterinário. A minha mãe mostrou-me à inofensiva senhora, que assim que teve um vislumbre da minha pele, se ajoelhou e erguendo os braços ao céu, exclamou «Graças a Deus! Graças a Deus que a menina saiu branquinha como o pai».
Condescendente, a minha mãe ri-se ainda do episódio. O meu pai expulsou a velha, eu ainda hoje me sinto chocada pela demonstração de tão atrevida estupidez.

Não lido bem com racismo. Não gosto quando me dizem que a minha mãe é quase branca, como se fosse preciso desculpá-la ou aliviar o horror que é não se ser claro. Não gostei quando lhe disseram para chamar a patroa, assumindo que alguém com aquele tom de pele não poderia ser a dona da casa. Fiquei furiosa quando uma superior lhe disse que iria gostar da nova colega, que era pretinha mas muito inteligente. Não pode haver tolerância para quem não sabe que devia ter vergonha de sentir ou pensar com preconceito, quanto mais abrir a boca para o verbalizar.

Esta subvalorização de quem não detenha características que se assemelhem às nossas é fruto de uma óbvia sensação de superioridade. Interessante é notar que a minha mãe nunca se fez valer da sua formação académica superior à de quem a discrimina, do nível financeiro avultado que caracterizou a sua existência, do facto de se mover numa classe social elevadíssima.
No entanto, eu não sou dotada dessa elevação toda. Já estraguei alguns momentos, confesso. Já arruinei jantares por não me calar quando alguém decide não esconder o seu racismo.

É verdade, vivemos num país em que não se atiram pedras a pessoas que não sejam brancas. Isso não significa que não vivamos num país racista.
De cada vez que alguém se surpreende porque um preto se comporta com bons modos, é racismo.
De cada vez que alguém chama preto a um preto, é racismo.
De cada vez que alguém diz que até tem um amigo preto, é racismo.
De cada vez que alguém se surpreende porque há um preto poliglota, é racismo.
De cada vez que há alguém que conta uma piada racista, é racismo.
De cada vez que alguém se espanta porque um preto é inteligente, é racismo.
De cada vez que alguém tem medo de alguém com quem se cruza na rua só porque não é branco, é racismo.
De cada vez que alguém me diz que não pareço mestiça, é racismo.

E é preciso combatê-lo. É preciso não ficar calado perante ele. É preciso ensinar que é errado. Que não se pode. Que é ridículo. Que é feio.

Da mesma forma, ser anti-racista não é defender apenas o lado africano.
De cada vez que alguém se refere a outro humano como branco, é racismo.
De cada vez que alguém chama azeitola ou neto do colono a um branco, é racismo.
De cada vez que alguém fala crioulo na presença de quem não percebe a conversa, é racismo.
De cada vez que alguém critica outra pessoa por ter casado com um pula, é racismo.
De cada vez que alguém parte do princípio que o racismo parte exclusivamente de quem não é negro, é racismo.
De cada vez que alguém age com desconfiança relativamente a outro por ter um tom de pele diferente, é racismo.

Já fui insultada pelos dois lados que foco aqui e que se esquecem de que não há lados. Somos todos humanos e eu sou a prova viva disso.
Somos todos gente.
Somos todos.

Magoa-me que no MODAAFRICA me tenham perguntado o que raio estava a fazer ali, porque sou branca. Curioso que a directora do evento tenha nascido em Aveiro, seja filha de pais portugueses, tenha pele clara. Como o meu pai, que sendo um alfacinha de gema, sempre disse saber ser mestiço - alguém vai negar que Portugal foi morada de árabes, visigodos e de tantos outros povos que não cabem na caixinha do ariano?
Magoa-me que em Angola me tenham insultado na rua, que me tenham dito para voltar para a minha terra. Eu estava na minha terra.
Magoa-me que uma fulana me tenha dito que não queria ser parecida com a Mariza, porque ela é preta.
Magoa-me que não saibamos todos que o ser vai além do corpo. 
Que somos todos pó de estrelas, que somos todos alma e espírito para lá do visível.
Que o essencial é invisível aos olhos.

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