quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Provincianismo urbano

provinciano | adj. | s. m.
pro·vin·ci·a·no 
adjectivo
1. Que é da província.
2. Pertencente ou inerente a pessoa da província.
3. [Figurado]  Acanhado, ridículo, aldeão.
substantivo masculino
4. Habitante da província.

Quanto mais crescida, mais orgulhosa me sinto da minha vida privilegiada. Ter crescido na zona centro, no seio de uma família cosmopolita, foi crucial para que desenvolvesse uma visão ampla do mundo. Há uma dilacerante ignorância relativamente ao país fora das grandes cidades - Lisboa e Porto - que me incomoda muitíssimo e também me entristece. Sinto a capital povoada de provincianos citadinos, gente que por mais que vá para fora do país conhecer outros horizontes, não sabe mais do que a sua rua lhes mostra. Da praceta ao shopping, do shopping à praceta, o itinerário muda apenas quando chega o Verão e com ele, o Algarve, a Comporta e a Caparica.  

Nasci em Lisboa, é em Lisboa que vivo, mas não trocaria por nada a minha experiência, tão rica, tão cheia, tão vasta. Saber que Portugal não é apenas a segunda circular e o IC19 faz-me ter aversão ao rótulo "terrinha" que se aplica a tudo o que se localize fora da capital. Ter que ir à China para experimentar um spa numas termas mexe comigo, quando a excitação causada por tal descoberta revela um total desconhecimento acerca dos tantos tesouros de que dispomos dentro de fronteiras (este é apenas um dos exemplos possíveis).

Ter vivido numa cidade da zona centro proporcionou-me uma qualidade de vida que dificilmente existe em Lisboa. Sejamos realistas, quase ninguém aqui pode ir a pé para o trabalho, já que as distâncias são muito maiores. Barco, autocarro, comboio, metro ou alguns quilómetros de carro são a opção óbvia para um percurso diário que por vezes demora tanto como a minha viagem até Pombal. 

Quando trabalhei na imprensa regional, podia inclusivamente ir almoçar a casa todos os dias, já que demorava apenas dez minutos a percorrer essa distância. E nesse período calmo e bom da minha vida, dizia em tom de brincadeira que a grande vantagem de viver ali era o facto de ter a A1 à mão de semear - uma hora e meia para cima ou para baixo e estava no Porto ou em Lisboa; meia hora de estrada e estava em Coimbra ou em Leiria. O concelho é muito extenso e vai da serra ao mar, no entanto, em 20 minutos estou na praia, no meu Osso da Baleia. Em Lisboa, a praia mais próxima de minha casa fica na linha e entre o trânsito e o estacionamento, nunca demoro tão pouco tempo, pelo que opto por praias mais calmas e que fiquem um pouco mais longe. 

Outra vantagem prática de viver fora da confusão da cidade que os turistas adoram? Os preços - de tudo! 
Das casas - um T3 novinho, com vidros duplos nas janelas, aquecimento central, lareira, varanda e garagem fica à volta dos 300 euros. Em Lisboa, já pedem 700 por um quarto como assim?
Dos cafés - um lanche básico, ao estilo tosta mista, sumo de laranja natural e café pode custar três ou quatro euros. Aqui pago um mínimo de seis. 
Das discotecas - sair à noite é tão barato que é ridículo! 
Dos restaurantes - um excelente restaurante dificilmente cobra mais de 17 euros por pessoa, com entradas, prato principal, sobremesa, bebida e café. 

E se isto não convence, então passem um fim-de-semana na zona centro e digam-me se encontram lugar onde se coma melhor. Tudo é bom e os estabelecimentos só pecam por excesso, já que as quantidades servidas são de impossível ingestão por apenas um ser humano. 

Mais que tudo isto, o ar. Sempre sofri com problemas respiratórios mas Lisboa está a dar cabo de mim e brevemente terei de ponderar uma cirurgia. 
Mais que tudo isto, o mar, pesado, violento, suave na areia amarela onde enterro os pés para me recarregar.
Mais que tudo isto, a pureza de quem vive numa casinha rodeada de floresta e partilha o pouco que tenha - estas flores lindas, para alegrar a tua casa; um frango caseiro, que fica óptimo no forno; estes ovos e um bolo, ao pequeno-almoço vai saber bem! O calor das caras conhecidas, em contraste com aquele frio que a noite traz, gelado na pele. Andar pela rua e parar a cada cinco minutos para outro beijinho, que há tanto tempo que não te via. Vem comigo, tenho ali uma coisa para ti - e vamos a casa do outro, buscar aquele pote de mel cujo sabor não existe em mais nenhum. E como o pai, que é médico veterinário, até trouxe um queijo para casa, que a senhora que tem ovelhas precisou dos seus serviços e quis agradecer para lá do pagamento, por ter salvo grande parte da sua única fonte de rendimento, é com ele que o provamos. Tocam à campainha - é a vizinha, com um saco de nozes. Entre, vamos beber um chá.

Os defeitos? A pequenez tem tantos perigos como a vida na cidade, só que se tornam mais visíveis porque a escala é diferente e a amostra também. Egos grandes em terras pequenas e falta de noção de proporção ou do seu próprio tamanho também invadem alguns habitantes, mas tendo a acreditar que a falta de mundo que tanto aponto se trata de um problema inerente às mentalidades e não aos lugares. 
O fulano que não sai de Odivelas e me pergunta o que raio se faz em Alfama à noite é tão ignorante como a miúda da linha que quer saber se há escolas em Pombal. Os dois são tão provincianos como o pombalense que nunca visitou o Terreiro do Paço. Portugal é um país pequeno e muitas vezes tacanho, ainda que os web summits desta vida nos façam esquecer, por breves momentos, quem somos, na ilusão da pertença a uma Europa e a uma aldeia global que nos é vendida um pouco por toda a parte. A falta de mundo de tanto lisboeta nascido e criado na capital trouxe ainda mais certeza nessa convicção. 

Mas o que importa sermos tão hi-tech, tão cheios de restaurantes gourmet, tão inovadores, se não nos interessa a nossa cultura? Se nunca vimos a actuação de um rancho folclórico? Se não queremos saber do nosso povo? Se não sabemos que ainda existem senhoras que usam lenços pretos na cabeça? Se não sabemos o que é uma cabaça? Se nunca ouvimos cantar as Janeiras? Se não gostamos desta coisa tão nossa e só nossa que é ser português? 
Portuguesa. 
É o que sou. 
A propósito deste meu discurso, perguntaram-me se me sentia Lisboeta ou Pombalense. Respondi que sou Portuguesa, numa fusão incrível de Europa e África. 

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