sexta-feira, 4 de março de 2011

da Diferença.

Benetton Kids
Ela era mais alta que os outros meninos e isso era suficiente para se destacar. No entanto, não era apenas a altura, já que ela também era a única menina que não era escanzelada. Não era gorda, mas também não era magricela. Tinha bochechinhas, muito rosadas. O louro do seu cabelo naturalmente liso era tão bonito que parecia fruto de uma coloração profissional. O azul dos olhos era igual ao que os bebés escolhidos para protagonizar spots publicitários de fraldas ostentam. Chamava-se Ana e estava sempre agarrada à educadora. Reparei nisso porque me reconheci nesse comportamento. Quando uma criança se sente ostracizada ou constantemente atacada pelo resto da criançada, apega-se a quem a protege - a educadora, a professora. Um grupo de meninas não mostrou pudores em dizer que a Ana era gorda, muito gorda. Apontavam-lhe o dedo e chamavam-lhe chata. Visivelmente triste, virou costas e voltou para perto da educadora, sem responder. Não interferi, não me achei no direito de o fazer. Mas foi difícil não ficar com o coração apertado e os olhos húmidos. Aquela menina vai crescer com o estigma da diferença, vai acreditar que é mais feia que os outros por não ser igual às outras, ainda que seja na realidade, mais bonita. Vai avançar no tempo com a constante presença desse monstro criado por quem a rodeia e vai demorar a ver-se sem uma visão turva. Talvez demore a valorizar o que a torna diferente e, por isso mesmo, especial. Talvez nunca se ache bonita.
Também eu fui posta de parte pela maldade de que as crianças fazem uso: era a maior da turma. Era a mais alta, não era magricela. Pior ainda, era a única menina mestiça na escola e cheguei a ter uma professora que o evidenciou: "A mistura de um branco com uma mulata dá uma cabrita. A Menina Lamparina é uma cabrita"... hoje rio-me de tudo isso, mas na altura não foi agradável ouvir a turma a balir em uníssono. Também era a única que não era católica. Não ia à catequese. Não tinha religião: "Conta lá, Menina Lamparina. És Testemunha de Jeová?", perguntou a dita professora. Nada contra os Testemunhas de Jeová, mas de facto eu não era. Os meus pais decidiram simplesmente deixar-me escolher, quando tivesse idade para isso, em que acreditar. Como a situação financeira lá em casa nunca me deixou andar rota e suja, porque havia dinheirinho para comprar fatiotas catitas para mim, também isso era alvo de crítica. Era rica e o meu pai, senhor doutor, tinha um Saab - que os outros miúdos nem sabiam o que era, mas como ouviam os comentários tecidos pelos seus pais, toca a levar isso no saco das ofensas para a escola. Fartos de me ver chegar a casa a chorar e a dizer que queria ser "mulata como tu, mãe", os meus pais ensinaram-me a defender-me. E assim foi. A certeza de que a diferença em mim não era uma coisa má, nunca me abandonou... mas afectou muito a minha capacidade de socialização, até aos 15 ou 16 anos. Espero que a Ana nunca deixe de acreditar em como ser diferente, por vezes, é uma vantagem. Espero que ela saiba que ser loura entre de morenas só pode causar invejas. E que a inveja só se sente quando se quer atingir algo melhor ou superior, que não detemos, mas o alvo da inveja sim. Espero que ela acredite na beleza dos seus olhos azuis e no poder das suas curvas, quando crescer.

3 comentários:

Imperatriz Sissi disse...

Excelente texto! Quem nunca se sentiu o bicho raro, que atire a primeira pedra. Eu, que fui educada para não fazer troça de quem era considerado feio, gordo, pobre com outro problema qualquer, fiquei de boca aberta quando cheguei à escola e vi a maldade dos miúdos. Claro que chegou a minha vez de ser gozada - porque era reservada (peneirenta) porque cresci cedo (o que me obrigou a distribuir estalada para me livrar de atrevidos) e porque e porque e porque. Onde há vontade de chatear, os motivos aparecem e o mais triste é que a máxima "ignora-os que isso passa" não resulta. O velho truque do papá, "confronta-os e bate-lhes também" foi o único que funcionou. E ainda o uso, sem chegar ao confronto físico. É a vida.

Li disse...

Boa Ana, continua a primar pela diferença e alcançarás o sucesso! ;) muitos beijinhos.

E agora vou ali ao FB dizer aos teus amigos que podem (e devem) comentar no blog, porque mereces ter comentários em muitos post deste excelente blog e não apenas no FB :)

Lady Lamp disse...

Obrigada, Imperatriz Sissi :) Infelizmente, a lei do mais forte ainda prevalece e temos mesmo que fazer uso de armas menos ladylike para pôr as pessoas no seu lugar.

Obrigada, Li... e vamos ver se a malta consegue comentar aqui, em vez de se ficar pelo face... :D