segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Mudar as lentes.

Sasha Pivovarova
Mudar os filtros e percepcionar tradições ancestrais como se nunca delas tivesse tido conhecimento. Olhar com olhos de ver, como uma criança. Observar. É um exercício que requer alguma disciplina, já que implica um total descolar de quem somos, do que já experienciámos, do que já conhecemos e que, por isso mesmo, nos turva a visão. Apesar de ser um prazer meu, a profissão que escolhi impele-me a fazê-lo com frequência.
Este fim-de-semana, tinha em agenda uma fotoreportagem, algo que há cerca de um ano me desagradava por completo e que descobri dar-me imenso gozo fazer. O objecto do meu trabalho foi uma festa em honra de um santo. Nada de especial. Honestamente, nunca tinha reservado tempo para me deixar surpreender com os rituais místicos que acabam por se misturar com aquilo que se diz ser divino. Não faz qualquer sentido honrar alguém que se acredita ser santo (mesmo que nada se saiba sobre a pessoa beatificada) com um festim de álcool. É um paradoxo que não consigo aceitar com naturalidade. Da mesma forma, não compreendo porque se juntam tantas pessoas para caminhar em procissão, num passo lento e pesado, num silêncio acabrunhado, com uma música fúnebre a servir de embalo. Levavam bolos, oferendas, portanto. Como nos tempos do Velho Testamento. Adoravam uma estátua. Depositam fé numa estátua. Se eu percorresse um caminho para manifestar a minha fé, para mostrar ao mundo em quem acredito, a alegria tinha que estar presente.
E os rituais que se cumprem, são cumpridos sem que se saiba ao certo para que servem. "Diz que se faz assim. Dão-se três voltas à capela"... e tudo perde o sentido quando não se sabe porque se faz - digo eu. Não consigo compreender. Será legítimo criticar um bruxo, que acende velas e diz lenga-lengas, para depois fazer o mesmo? Às vezes tenho a profunda desconfiança de que se ao dirigir uma missa, um padre dissesse: "Pico pico saranico, quem te deu tamanho bico", o povo se levantava e repetia: "tamanho bico". Tudo oco e desprovido de significado. E assustador, quando olhamos de fora, esquecendo a normalidade de um ritual a que assistimos desde sempre. Afinal não evoluímos assim tanto.

5 comentários:

Jpimentel disse...

Realmente, às vezes assusta-me o facto de as pessoas não se questionarem e, assim, conseguirem pensar por elas próprias. Pensa-se "assim" porque alguém diz que é "assim". E até pode ñ haver outra maneira que ñ "assim"... mas já agora, porque é que é "assim"? E mesmo assim, continua-se na mesma?

Imperatriz Sissi disse...

Eu própria, que tenho fé,sempre tive a curiosidade de explorar as raízes das tradições e costumes. Muitos rituais têm apelo precisamente pela sua estranheza e mistério. Se funciona, usa-se...mas há que questionar as origens! É verdade que a resposta do povo costua ser " não sabemos...é um mistério muito grande" e que muitas tradições cristãs vieram do paganismo e foram mantidas precisamente para agradar ao povo - que a elas estava habituado. A imagem do pico sarapico é uma delícia. Pagava para ver isso :D . Beijinhos

Lady Lamp disse...

Jpimentel: O pior é que esse espírito submisso e passivo não se aplica apenas ao que à religião diz respeito...
:)*


Imperatriz Sissi: Se as pessoas conseguirem atribuir um significado a uma crença ou a um ritual, sou a primeira a respeitar a sua opção. Contudo, quando é a ignorância a comandar, custa-me compreender. Agir como se fossemos marionetas faz com que não se use aquilo que nos distingue das outras espécies: a capacidade de formular raciocínios complexos. E sim, também pagava para assistir a um momento desses ;D Beiju*

Jpimentel disse...

O intuito de pensamento era mesmo esse, já que é uma atitude que vai para além da religião e se aplica a tudo o resto. Por exemplo, qual é a diferença entre a religião e a política? E a imagem que deste do bico, até penso que isso já acontece só que com palavras que aos ouvidos de todos parecem fazer sentido...

Lady Lamp disse...

Estamos em sintonia. Embora a religião se encontre num plano espiritual e a política pertença a uma dimensão mais prática e mundana, a atitude das pessoas perante ambas é similar. Sabes que é bem mais fácil dizer "amen" a tudo e copiar ideias, que pensar, contestar, problematizar... Se questionares, és incómodo e é-te incómodo também. Ir com a carneirada é muito mais simples.