quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Gui

Andava triste, então deixei de escrever aqui. Agora todas as outras tristezas parecem caprichos. Sabes, um amigo nosso disse-me há tempos que eu devia deixar de escrever para os outros e escrever as minhas idiotices para mim. O que ele não sabia é que quando temos esta alma, é mesmo para nós que se vertem as palavras. Tive medo de me sentar aqui, de computador à frente e dizer-te mais do que o "desculpa" que tem saído sucessivamente. Mas acho que preciso.

Ontem vi-te ali, no sítio em que combinámos jantar tantas vezes. Nunca pudeste vir e nós, que achamos que o corpo dura para sempre, acreditámos todos que ia acontecer em breve. Vi-te sentado connosco, o teu sorriso vivo, as nossas conversas animadas. Em vez de te recordarmos, estávamos a aproveitar a tua presença. Em vez de nos desfazermos em lágrimas com um fado sobre a dor de quem fica, estávamos a ouvir os teus planos mirabolantes para a minha carreira internacional como fadista. E eu nunca quis cantar para ti. Desculpa.

Esta merda não pára. O choque. De repente, não sei nada. Estou com a vida suspensa desde Sábado. Não sei o que fazer. Ingenuamente, pensei que depois do funeral ia ficar melhor, como se esse evento tornasse real o que não processei. E fiquei pior. Sinto uma vergonha imensa por não conseguir dizer ou fazer alguma coisa que de algum modo console os teus amigos, cuja dor será maior que a minha. E sinto uma vergonha imensa por estar neste estado quando tens uma família que está a sofrer tanto. Só posso pedir a Deus que os alivie. Tenho tentado, ainda que calada, estar lá para a Maria. Mas a tua partida, tão violenta e sem sentido, mexeu com a estrutura de toda a gente.

Não me sai da cabeça a imagem da tua expressão enquanto me puxavas para dançar, na Sexta-feira. E estou cansada de reviver essa noite, uma vez depois da outra, vezes seguidas, analisando cada detalhe que poderia ter sido de outra maneira. Quando me disseste, num rasgo de espontaneidade, que deveríamos todos ir contigo ver o mar, ri-me. Devia ter levado a sério, devíamos ter ido. Devia ter-te dito como estavas bonito com o cabelo mais comprido. Tal como devia ter dançado contigo mais tempo.

No teu funeral, aquela música não saía de dentro de mim. Era impossível não rir às gargalhadas quando se começava a ouvir "Moro num país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza"... E cantávamos todos que em Fevereiro havia Carnaval. E ali estava eu, em pleno dia de Carnaval, em marcha para o cemitério. Nem os palavrões ajudam. E tu, que querias feliz toda a gente à tua volta, que depois de me secares lágrimas me dizias "Não podes ficar assim de cada vez que as coisas não acontecem como queres" e me obrigavas a sorrir à força e a levantar-me, tu não estás aqui. E eu vou sentir sempre que devíamos ter ido tomar o pequeno-almoço a algum lado, mesmo que chegássemos a casa à hora do almoço.

Ontem quando cheguei a casa, apesar de cansada e com um raciocínio lento porque só dormi duas horas, voltaste a fazer-me sorrir quando me apercebi de que só trouxeste coisas boas. Apresentaste-me o João Pedro e se não fosse isso, ontem não teríamos estado os três juntos aqui em Lisboa. Desta vez estávamos profundamente tristes, mas pelo menos juntos. Estiveste tão presente, mas fizeste tanta falta. Uma vez pensaste que eu estava mesmo chateada contigo porque estava farta de esperar por um espaço na tua agenda para vires ter connosco. Como poderia chatear-me contigo se a vida para ti era um parque de diversões?
E tanta gente sem interesse nenhum para o planeta continua cá... cresci com a certeza de que Deus tem um plano para cada um de nós e hoje não sei se Ele não lida connosco como o dono de um aviário lida com as galinhas. Na volta, isto é só uma sucessão de ocorrências aleatórias em que o efeito borboleta impera. Porque não faz sentido.

Passei as últimas semanas aterrorizada com a ideia de que a minha avó poderia morrer, ainda por cima numa data tão próxima do 7 de Fevereiro, 60º aniversário do meu pai... e acordei na manhã de Sábado com a violência do que aconteceu. Não faz sentido.

E se eu tivesse cedido aos teus impulsos conciliadores, se eu não tivesse sido tão dura? Desculpa. Desculpa. Desculpa. Isto vai ficar para sempre em mim. Um pormenor e podíamos ter evitado aquelas notícias que me enchem de raiva. Sabes, sempre estive do outro lado - do lado de quem as escreve. Nunca me senti muito confortável a fazê-lo, mas trabalho é trabalho e quando me pediam que sacasse a foto de perfil de alguém, sentia-me muito mal. "É público, Ana. Qual é o problema?" - o problema é este. Quem está do lado oposto, do lado que dói, do lado de quem perdeu uma pessoa. Do lado do vazio. Do lado de quem ficou mais pobre.

Achamos que vamos durar o tempo todo. Como se o corpo fosse eterno. Por isso é que deixamos para depois, por isso é que adiamos, por isso é que nos vamos conformando com o que temos por medo de dar o salto, de arriscar. Medo de viver. Achamos que vamos estar aqui para sempre e é por isso que nos chateamos com coisinhas miúdas. Por isso é que não perdoamos. Por isso é que damos lugar ao orgulho.

E tu já sabias isso. Apesar de seres mais novo que eu, falavas comigo como se eu fosse uma miúda. E em todas as tuas frases havia a certeza de que a vida era para ser vivida. "Vai", "faz", "diz".

Ontem a Maria perguntava ao João Pedro como é que se lida com isto. Claro que ele não sabe como. Ninguém sabe. Mas a certo ponto, ele perguntou: "Já decidiste tirar alguém da tua vida? Isso também é matar. Matar de ti". Só que nesse caso, primeiro dói, custa, temos saudades agonizantes, depois habituamo-nos à ideia porque foi uma vontade nossa. Contigo, não. Arrancaram-te das nossas vidas sem dó nem piedade. Ninguém escolheu. Estive contigo e na manhã seguinte, já não ia voltar a ver-te aqui. Nem sequer estavas doente, como quando alguém tem cancro e podes começar a imaginar um futuro negro. Não estavas velho, para percebermos que falta pouco. Não faz sentido.

Descíamos do cemitério com o teu primo e senti-me péssima - ele perdeu o primo e estava a dar-nos força. Disse tantas coisas bonitas sobre ti. E eu lamentei não te ter dito outras tantas - ou porque estava com sono e não conseguia acompanhar-te nessa energia toda, ou porque me fazias perguntas cujas respostas seriam demasiado extensas, ou porque depois teria tempo para te explicar melhor. Desculpa.

Não sei como vão ser os dias. Não sei onde ir. Não sei nada.
Passou tão pouco tempo e este fosso enorme parece aumentar.
Quando acordo, ainda não abri os olhos e lembro-me de ti.

5 comentários:

Anita disse...

Lamento a tua perda. Muita força para ti neste momento. Há mortes que temos de encaixar em nós, ao invés de termos esperança que doam menos. Deixo um abraço apertado e um beijinho*

Isabel Margarida Simões disse...

:(

Anónimo disse...

Lamp, Força, muita força.
Fala sempre connosco, estamos aqui para ti 😊
beijinho muito grande no ♥
M*

Anónimo disse...

Ja te disse que adoro o que escreves ?! Beijinho grande... Hélia

Joana disse...

Dá para sentir a tua tristeza, mas não deixa de ser uma bela homenagem. Lamento a tua perda...