segunda-feira, 17 de março de 2014

da fraqueza que é ceder

Porque é assim, diz ela enquanto fita o vizinho a regar as flores do canteiro, queixo apoiado na mão direita e semblante de menina que finge ser crescida. As coisas são como são. As estrelas não caem do céu, a comida não se faz sozinha e os passos levam-nos sempre a algum lado, continua. A divagação parece absurda, tão absurda quanto o momento que vive. As flores devem ser regadas à noite, sabias? Olha o viúvo que vive alguns andares abaixo, numa modesta vivenda à frente da sua casa, e continua: Não gosto de mim quando estou apaixonada. Não gosto. Por isso é que não me quero apaixonar. A brisa quente trouxe-lhe a reminiscência do calor que o outro corpo emanava, junto ao seu, quando se sentia embalar pela doce sonolência de quem está bem onde está. Acariciava-lhe os pêlos do peito, absorvia o cheiro bom da sua pele e assim trazia em si um pouco dele. Não é só medo nem é frieza da minha parte. É a certeza de que não posso nem quero voltar àquele estado em que te expões à vulnerabilidade, em que te tornas frágil. No fundo, é uma entrega sem pára-quedas, em que a viagem deixa saudades, mas a queda marca-te com cicatrizes muito feias. Passa um gato que mia, ouvem-se passos e dobra a esquina um casal de mãos dadas que ri. Não é para mim, aquilo. Não é para mim essa doçura enjoativa. Não quero voltar a ser a mulher exemplar, que cumpre os papéis de mãe, amiga, esposa, cozinheira, massagista, irmã, companheira, confidente, consultora de imagem, assistente, namorada. Não posso voltar a ser aquela pessoa dedicada, altruísta e que dá amor sem pedir quase nada em troca. O mundo é dos fortes.

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