Conheço-o como se conhecem todas as pessoas com quem partilhamos as ruas da cidade onde vivemos. Sabemos quem é o outro durante longos anos, uma vida inteira, mas não conhecemos a sua alma, o que diz o seu espírito, o que lhe dita o gosto e que experiência o faz ser quem é no presente. Na verdade, sabemos-lhe o rosto e pouco mais. Era assim que o conhecia, com o acrescento de que sempre nutri a mesma simpatia por ele.
Há semanas, do alto da sua idade maior que a minha, veio falar-me. Foi a nossa primeira conversa para lá dos bons dias, boas tardes e boas noites. Fez-me sentir pequenina, por vezes tímida e muito grata. Disse-me que me lia, confessou gostar de me ler. Acima de tudo, revelou estima pela menina que ainda sou, que me esqueço de que ao escrever, sou lida. E alertou-me para os perigos de tanto me expor, abrindo portas para quem só me lê por vã curiosidade, como as velhas que ficam à janela a controlar as entradas e saídas da vizinha. Avisou-me para a maldade desses leitores, que inferem ilações das minhas entrelinhas, deduzindo erradamente a meu respeito e aproveitando todo esse imaginário para me prejudicar.
Gosto de pessoas que dizem o que pensam, que pensam o que dizem. Gosto de pessoas francas e que me conseguem ver para lá da personagem de mim. Mas a verdade é que se pensar nisso, nessa massa homogénea que retira das minhas palavras o que lhes convém por um qualquer interesse mesquinho, perderei a essência que me faz ser, que me faz escrever diariamente no meu livro cor-de-rosa, que me faz deixar fluir, sem pudores, o que me sai do coração para as pontas dos dedos.
Não sei moderar mais do que já modero. Não sei viver em contenção. Gostava de saber como se tem cuidado com o vento, como se prende uma onda, como se queima fogo. Não sei, talvez nunca venha a saber ser de outra maneira. Talvez um dia aprenda a ser cautelosa. Até lá, que os pequeninos que não me lêem com a pureza com que escrevo possam vir a aprender um pouco mais sobre os dias que gastam interessados em mim e não no que lhes deveria ser importante. É que ao procurarem nas minhas letras todo um ânimo para as suas horas mortas, estão a deixar passar oportunidades de existir no seu próprio mundo, para ficar simplesmente a observar o meu.
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