segunda-feira, 9 de abril de 2018

«Os bons vi sempre passar no mundo graves tormentos»

inveja | s. f.
3ª pess. sing. pres. ind. de invejar
2ª pess. sing. imp. de invejar
in·ve·ja |â| ou |ê| ou |âi| 

(latim invidìa, -ae)
substantivo feminino

1. Desgosto pelo bem alheio.
2. Desejo de possuir o que outro tem, geralmente acompanhado de ódio pelo possuidor.

"inveja", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa


É uma frase que digo com muita frequência: «nunca senti inveja de ninguém». Não faço esta afirmação por ser uma pessoa exemplar - longe disso. A verdade é que sou muito grata por tudo o que tenho, vivo e sou, pelo que não trocaria a minha jornada e existência por nenhuma outra. Além disso, sou tão esquisita com essas histórias da felicidade e das conquistas, que as dos outros não me parecem ideais para mim. 

A noção de sucesso varia de pessoa para pessoa, os desejos que temos são todos diferentes e todos atribuímos mais valor a umas coisas que a outras. Simples. A relação entre a minha amiga e o namorado dela pode ser muito satisfatória para eles mas ao observá-la, há sempre detalhes que não encaixariam na minha vida, na minha personalidade ou nos meus requisitos.
O Lamborghini alheio não me faz comichão, porque não gosto de carros que me façam querer dizer «Kitt, vem-me buscar». E se porventura alguém comprar o carro dos meus sonhos, aviva em mim a esperança de lá chegar também.

Sou, portanto, alguém que nunca sente inveja.

Por natureza, fico genuinamente feliz pelos feitos dos que amo. Quando uma amiga minha conseguiu comprar o seu primeiro automóvel sozinha, chorei com orgulho, como se tivesse sido eu a atingir esse patamar.
O mesmo acontece em todas as outras circunstâncias da vida, aqueles passos naturais na evolução do ser humano numa sociedade organizada. Vivo muito bem com as coisas boas que acontecem a quem está ao meu redor, porque me acrescentam em alegria e motivação: o ordenado maravilhoso, a casa perfeita para quem a vai habitar, o primeiro bebé que vem a caminho. Tudo.

Talvez isso se deva ao facto de ter tudo muito bem arrumado cá dentro. Ser resolvida também é isto: ao saber quem somos e para onde vamos, não queremos experimentar caminhos que não o nosso.

A felicidade dos outros é mesmo dos outros e está cheia de defeitos para mim: não é como quero. Quem pensa assim, não sente inveja, já que tem perfeita noção do que quer da vida.
Como um fato à medida, a tua bênção foi mesmo desenhada para ti e nunca me serviria. Da mesma forma que o contrário também acontece.

Só há um caso em que às vezes sinto que estou quase a ceder à verde tonalidade da inveja. Mas depois de analisar cuidadosamente o que se passa em mim, percebo tratar-se de pura indignação.

Imaginem a pessoa mais insensível, fria, oca, preguiçosa e leviana que conhecem. Agora imaginem que essa pessoa age em constante displicência. Que é irresponsável, imatura e que não é dotada de qualquer autonomia. Que tem uma inteligência mediana e não conta com os valores nem os princípios básicos para ser alguém bom bem vincados na sua fraca personalidade. Que não é uma pessoa que contribua para o bem comum em nenhuma das secções da sua vida - pessoal ou profissional. Imaginaram?
Agora imaginem que apesar de tudo isso, de não ser alguém educado, de trato agradável e interessante, essa pessoa recebe o que quer. Sempre.
Imaginem que não merecendo, recebe um ordenado muito acima da média, tem o carro que lhe apetece, a casa com que sonhou, os problemas todos resolvidos por outros.
Mais um pouco de imaginação: faz de conta que essa pessoa não só não valoriza tudo isso, como está constantemente a estragar o que lhe caiu no colo porque se está nas tintas para o que de graça lhe foi dado, por isso não estima nada (nem bens, nem pessoas, nem nada)... e que mesmo assim, se safa sempre. 
É rude, é malcriado e mesmo assim continua a receber em abundância tudo o que toma por garantido.

Isso indigna-me. Mexe comigo. Arde-me no peito. Irrita-me solenemente.
E dou por mim a censurar-me, ordenando-me que nem ouse invejar, que isso não é sentimento para caber aqui dentro - e ao olhar com atenção, não há nada disso. Há indignação, por saber que há quem mereça, quem se esforce, quem valorize o pouco que tem e não consiga passar da cepa torta. 

Olho para aqueles putos, ambos a ganhar o ordenado mínimo, felizes com a casa da porteira que conseguiram finalmente arrendar, a escolherem não arriscar já num carro. 
Olho para os outros, sem estabilidade financeira para poderem investir nos seus sonhos, a ir religiosamente para o trabalho todas as madrugadas. 
Olho para aquela, há trinta anos fiel e competente no mesmo emprego, sem ser aumentada há dez. 
Olho para os homens do lixo, sem os quais seríamos condenados a viver na trampa e expostos à propagação de epidemias graves e perigosas, a fazer aquele trabalho tão duro, durante a noite, ao frio, por tão pouco.
Olho para tudo isso e não entendo.
Porque não é justo.
Não é inveja. É indignação. E despeito.

Já dizia Camões:
«Os bons vi sempre passar
No mundo graves tormentos;
E para mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado:
Assim que só para mim
Anda o mundo concertado.»

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