terça-feira, 20 de junho de 2017

"Não saiba a tua mão esquerda o que faz a direita"

Ainda era pequenina quando a minha mãe abandonou a nossa casa em Pedrógão Grande, ameaçada pelo fogo que se aproximava, comigo ao colo, levando apenas um cofre e as coisas necessárias para cuidar de mim. Foi para o centro da vila, sem saber onde estaria o meu pai, já que sendo médico veterinário municipal, faz muito trabalho de exterior. Na altura, ainda não existiam telemóveis, foi noutra vida. Não perdemos nada, foi só um grande susto. 

Quem me acompanha e me conhece sabe que apesar de ser de uma família que se concentra em Lisboa, sempre vivi na zona centro, devido à profissão do meu pai. A minha mãe chegou a ser funcionária do Ministério da Agricultura, exercendo funções em Ansião, concelho onde actualmente se encontra o teatro de operações que aparece a toda a hora nas televisões. É lá que estão tantos rostos conhecidos a fazer o que podem para ajudar as vítimas deste flagelo.

Estamos no terceiro dia de Luto Nacional. Como quase toda a gente que conheço, estou de coração partido. Cresci com medo do que está acontecer: cresci com medo dos incêndios, cresci com medo de que o fogo consumisse as árvores, matasse animais, destruísse casas. Curiosamente, nunca tive medo que o fogo matasse pessoas porque pura e simplesmente nunca me ocorreu que fosse possível, com todos os recursos disponíveis, que isso acontecesse.

Aconteceu.

Não consigo evitar as lágrimas, a consternação e a sensação de impotência. Estou em Lisboa e ainda não pude ir para onde está o meu coração. Tenho feito o que posso daqui mas é lá, é junto das minhas pessoas, da Paula, da Marlene, da Adelaide, da Filipa, do Justo e de tantos outros, é lá que devo estar. Não quero ver o Leonel pelo facebook nem o Fernando Inácio nos telejornais. É para lá que quero ir, que as minhas lágrimas não servem para nada e tenho que levar as coisas para aquela gente sempre esquecida, que este país com a mania que é cosmopolita e doutorado abandona com as suas reformas miseráveis. E são eles, o povo, que sempre tive o privilégio de conhecer de perto não só pela vida maravilhosa que os meus pais me proporcionaram na província mas também devido à minha vivência como jornalista, que têm sempre tanto para ensinar, para dar, numa generosidade mais delicada e elegante que muito catedrático, muita celebridade e muito novo rico com quem me cruzo.

Estamos no terceiro dia de Luto Nacional e já vi de tudo. Gente que não saberá, certamente, o significado de um Luto Nacional e que não manifesta qualquer respeito pelo que está a acontecer. Gente que nunca quis saber dos bombeiros mas que agora partilha imagens sentidas nas redes sociais. Gente que nem por reverência se mantém em silêncio. Gente que se está marimbando para esta tragédia, apesar de chorarem com pena das vítimas de atentados terroristas noutros países.
Há muitas pessoas mal educadas e que ousam brincar com a situação ou mostrar, sem pudores, que estão muitíssimo bem nas suas vidinhas. Há ainda aqueles que roubam para si o protagonismo da acção e não resistem à habitual gabarolice de quem está a gostar de brincar às caridadezinhas. Ofendem-me. 
Por outro lado, como sempre, também vi a atitude solidária, nobre e comovente de quem dá e se dá porque é o que há a fazer agora. Aqui, onde estou, em Lisboa. Na minha cidade, em Pombal. E esses fazem-me sentir grata e orgulhosa.

Os números ainda não estão fechados, o fogo ainda não está apagado, mas para lá do pesar, há a urgência de ajudar estas pessoas a reconstruir - vidas e casas.

Hão-de ser apuradas responsabilidades, hão-de ser apontadas as falhas. Agora é tempo de fazer, de responder, de dar, de ser. O Estado não está a corresponder às expectativas? Haja comunidade e pessoas porque o que importa é fazer. Há tempo para o resto.

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