terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Privilégios

Candice Swanepoel
Ser filha de um Médico Veterinário de província fez de mim uma privilegiada. Ter contacto com o meio rural, com a realidade de zonas não urbanizadas e fora do espaço cosmopolita em que a minha família se move fez com alargasse horizontes. Fez de mim a pessoa profunda que sou, dotou-me de uma sensibilidade especial para apreender outros mundos, outras vidas, outras linguagens, outras percepções, outras formas de estar na vida.
O resto da família reside na capital e tenho primos que não conhecem nada mais para lá do seu bairro, da sua praça, da sua rua. Alguns nunca viram uma galinha ao vivo. Outros acreditavam, em pequenos, que os ovos eram produto de fábricas, uma vez que tinham um código numérico gravado na casca. Uma das minhas primas chegou a perguntar-me se em Pombal existiam escolas. Confesso que esta última não esperava, uma vez que a miúda tinha dezasseis ou dezassete anos. Perante a minha expressão boquiaberta, a Mana Lamparina decidiu responder: «Há muitas escolas, públicas e privadas. No centro da cidade, porque Pombal é uma cidade, há quatro ou cinco. Ou mais. Há um shopping, três centros comerciais pequenos, um Intermarché, um Bricomarché, uma Telepizza, dois Pingo Doce, um SPAR, um LIDL, Minipreço, cinema, piscinas, cafés, lojas, uma Benetton, uma Naf Naf, autocarros, biblioteca, comboios, restaurantes, um Hospital, um Centro de Saúde...» A lista foi longa e elucidativa. Falou de Leiria e de Coimbra, enumerou as Zaras, falou dos kartings e dos museus... Cheguei a pensar que a Mana ia rebentar, que ia arrastar a prima pelos cabelos até à província para lhe mostrar que há vida depois da capital. Que aqui não há só mato e senhoras velhinhas de lenço na cabeça a cavar a terra.
Esta vivência que a profissão do meu pai nos proporcionou trouxe-nos um largo conhecimento do que é a vida fora das cidades, por isso digo que fomos privilegiadas - tivemos o melhor de dois mundos na nossa formação enquanto gente. Apesar de nunca termos tido mais que pequenos animais domésticos como cães, gatos, chinchilas, peixinhos e passarinhos, lidámos com cabras nada de piadinhas fáceis, ovelhas, vacas eu disse nada de piadinhas fáceis como estas, porcos, coelhos, cavalos, galinhas. Sempre adorámos desempenhar o papel de assistentes do pai nas consultas ao domicílio, de bata e tudo. Além do presunto e do queijo maravilhoso com que nos recompensavam depois do trabalho, vibrávamos com partos a vacas, ficávamos em êxtase ao ver vitelos a nascer e a erguerem-se nas quatro patas mal saíam de dentro da mamã. Aos sete anos salvei a vida a um leitão que parecia ter nascido morto. E como o circo vem à cidade, toquei em jibóias, ursos, panteras e leões (anestesiados, comme il faut!). E o mais interessante de toda esta experiência é o conhecimento que obtive sobre o ser humano. Conheci pessoas brutas, sem educação e sem princípios, pessoas que enterram os gatinhos vivos «porque são uma praga». Conheci pessoas sem qualquer formação académica mas com mais delicadeza no trato que muito doutorado com quem já me cruzei. Conheci pessoas que tratavam os seus animais como futuro alimento e pessoas dispostas a tentar de tudo para que o seu amigo sobrevivesse. E conheci também aquelas que tratam os seus animais como gente e que julgam ser as únicas pessoas no mundo a amar animais não racionais. Aquele género que põe o seu perfume no Yorkshire Terrier e o deixa comer os restinhos do jantar e lamber o gelado delas, mas que depois se surpreende quando o fofinho aparece com peladas, perde os dentes todos e morre devido a problemas hepáticos. Gente burra a quem o meu pai tem de lembrar que ele escolheu dedicar-lhes a sua vida porque gosta realmente deles... e que se diz que algo não é indicado, não é por não desejar a felicidade do bicho.
Apesar de ter passado por uma fase fortemente marcada pelo ciúme em relação aos animais das outras pessoas, aqueles por quem o pai me deixava no Natal ou no meu aniversário «porque o animal não tem culpa», desenvolvi uma relação particular com eles. Respeito-os, mimo-os, mas não me esqueço da sua natureza irracional. Talvez por isso seja uma dona equilibrada. Talvez por isso não tenha pachorra para certos fundamentalismos nem para vaidades ou faltas de responsabilidade. Talvez continue este post noutro dia...

5 comentários:

neuza disse...

Tão bom,
É óptimo crescer nesse ambiente!
E perceber que os frutos nascem das árvores :)

Muitos beijinhos
MUAH* <3

Neuza Mariano

Imperatriz Sissi disse...

Adorei o texto! E embora goste da cidade, o campo tem muito encanto. Não o troco por nada.

Maria disse...

gostei de ler o post baby :) e a mana lamparina respondeu muito bem à tua prima :)

bjo*

lena disse...

É uma vida diferente e saudável. Já vivi com os meus pais algum tempo no Luxemburgo numa quinta. Era pequena mas lembro-me dos cuidados com os animais da quinta, dos partos etc... Foi uma experiência linda. Depois fomos para Paris e uma vida oposta. Hoje em Portugal continua a gostar de ir a aldeia a casa de família e os meus filhos conhecem a vida do campo e gostam de la ir passar uns dias. Acho que vale a pena conhecer a vida no campo.
Beijinhos grandes.

Anónimo disse...

Como médica veterinária, compreendo tudo :)
Raquel